O que a ficção contemporânea japonesa tem a ver com a Psicologia Junguiana? Em Se os gatos desaparecessem do mundo, de Genki Kawamura, as conexões são surpreendentes.
Lançada no Brasil em 2024 pela Bertrand Brasil, a obra parte de uma situação peculiar: um jovem carteiro, solitário e recém-diagnosticado com câncer terminal, vive apenas com seu gato preto, Repolho. Em meio à digestão da notícia, o Diabo surge e lhe propõe um pacto no estilo de Fausto: para cada coisa que o protagonista aceitar apagar da existência, ele ganha um dia a mais de vida.
O humor sutil da narrativa é um de seus encantos. Por exemplo, ao descobrir sua condição, ele reflete: “A primeira coisa que passou na minha cabeça foi que faltava apenas um carimbo no cartão fidelidade para eu conseguir uma massagem gratuita” (p. 9). Esse toque humaniza o personagem, criando uma imediata conexão com o leitor.
A visão do Diabo, aqui, traz traços junguianos: ao invés do estereótipo demoníaco – roupa preta, muito menos cauda pontiaguda e tridente –, ele aparece com a mesma aparência do protagonista, mas paradoxalmente é extrovertido e estiloso, vestindo uma camisa havaiana chamativa.
A cada coisa que permite desaparecer, algo das relações não resolvidas do protagonista — com a ex-namorada, a mãe, o pai — emerge. Em um momento crucial, o Diabo diz:
__ Pois é. Sou feito de todos os seus arrependimentos. Daqueles caminhos pelos quais você não seguiu quando se viu numa encruzilhada e depois ficou se perguntando o que teria acontecido, ou quem você teria se tornado, caso tivesse seguido por ele. O Diabo é isso. É aquilo que você queria se tornar, mas não conseguiu. É a coisa mais próxima e a mais distante de quem você é, por mais paradoxal que possa parecer. (p. 161).
A narrativa aborda com maestria o confronto com a sombra, na perspectiva junguiana. Na página seguinte, o Diabo conclui: “Os seres humanos são assim mesmo, cheios de remorsos pelas coisas que não fizeram.”
O clímax vem com a dura decisão de apagar os gatos do mundo para ganhar mais um dia de vida. O jovem carteiro se vê forçado a refletir sobre o que realmente importa para ele, dando ao leitor a chance de repensar a própria vida por meio desta delicada e provocante narrativa japonesa.
Monica Martinez
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