Eu me deparei com o nome da psicoterapeuta, artista e codiretora Clínica Psicológica de Harvard de uma forma surpreendente. Nos tempos das aulas do meu curso de psicologia, estudávamos a aplicação de testes numa das disciplinas. E, naturalmente, falamos do TAT, o Teste de Apercepção Temática, que teria sido criado nos anos 1930 exclusivamente por Henry Murray (1893-1988), na Clínica Psicológica de Harvard.
Ao manipular as pranchas que retratam situações sociais e relações interpessoais do TAT, achei fascinante a técnica projetiva que permitia entender um pouco do interior da pessoa e de suas percepções em relação às suas experiências de vida a partir das narrativas que ela contaria da imagem.
A partir daí, fui buscar mais informações sobre o teste e, então, me deparei com informações sobre sua coautora, Christiana Morgan (1897-1967). Bom, pensei, mais um triste caso de uma mulher que colaborou intelectualmente no desenvolvimento de algo importante e foi invisibilizada por questões sócio-históricas.
Ao pesquisar mais sobre Christiana, contudo, fiquei surpresa ao descobrir que tinha tido uma intensa aproximação com o campo da Psicologia Analítica, e que tinha inclusive sido analisanda de C. G. Jung, por nove meses, em 1926. Durante minha formação como especialista em Psicologia Junguiana eu não ouvira falar dela. Portanto, era um caso mais triste ainda: além de ter sido excluída do campo da psicologia, se tratava de uma psicoterapeuta junguiana que ficou excluída dos próprios estudos do campo. Uma questão que tem me interessado vivamente nos últimos tempos: os excluídos do nosso próprio campo de estudos.
Recentemente, seu nome voltou à minha consciência. Estava com vontade de fazer um post sobre ela para meu blog. Mas percebi que ainda sabia pouco dela.
Descobri, então, a biografia escrita por Claire Douglas, “Translate this darkness: the veiled woman in Jung´s circle”, editada pela Princeton University Press em 1993 1. Traduzido de forma livre, o título seria “Traduza esta escuridão: a mulher velada no círculo de Jung”. Título sugestivo, porque a mulher "velada" poderia representar uma figura ou aspecto não totalmente revelado ou compreendido, seja no sentido literal (usando um véu) ou figurativo, sugerindo segredos, mistérios ou aspectos inconscientes da psique. Em contextos relacionados à psicologia junguiana, isso pode remeter a arquétipos ou símbolos ligados ao inconsciente coletivo, à sombra ou a elementos não completamente acessíveis da personalidade.
Douglas dedica mais de uma década para a pesquisa e a biografia que escreve de Christiana tem uma narrativa fluente e bem fundamentada. Aliás, por falar em narrativa de qualidade, Douglas foi esposa do escritor estadunidense J. D. Sallinger (1919-2010), autor do famoso “O Apanhador no Campo de Centeio" (The Catcher in the Rye), publicado em 1951.
Durante o tratamento de nove meses com Jung, ele lhe sugeriu que Christiana tinha uma tipologia como a dele: era considerada por ele uma intuitiva pensamento. Portanto, igualmente talentosa em utilizar o método da imaginação ativa idealizado por Jung na década anterior. De tal forma que ele chegou a dizer que ela estava fazendo um mergulho no mundo interior dela da mesma forma que ele havia feito ao criar por meio do experimente consigo mesmo o método, uma década antes. Logo, a produção criativa de Christiana permitiria um avanço significativo na compreensão da psicologia do feminino.
A notável sequência de imagens que ela cria neste período se torna, quatro anos depois, o conteúdo de análise de Jung para o preparo dos Seminários da Visão, ministrado de 1930 a 1934 em inglês em Zurique. A audiência era formada majoritariamente por analisandos, que vinham de várias partes do mundo, notadamente Estados Unidos e outros países da Europa, como parte do treinamento para também se tornaram analistas.
Claire Douglas escreveu uma contundente introdução no livro “Visions: Notes on the seminar given in 1930-1934”2, em português Visões: Notas do seminário dado em 1930-1934), lançado pela Routledge em 2019, no qual ela organizou estas palestras de Jung. Segundo ela, ao longo daqueles quatro anos, Jung talvez não tivesse se aberto para aprender o que a produção de Christiana Morgan pudesse lhe ensinar sobre a psique de uma mulher. Ao contrário, ele teria tentado encaixá-la no contexto de sua própria abordagem metodológica. Além disto, Jung teria se dobrado à mentalidade da audiência, ao Zeitgeist da época. O resultado teria sido uma depreciação do trabalho imagético profundo de Christiana, comentado como uma simples possessão do animus, a parte masculina da psique feminina.
Em 2019, o simpósio “Coniunctio in Christiana Morgan’s Visions” foi organizado pela C.G. Jung Foundation em Nova York. Nele, a analista lona Melker defende que o seminário de quatro anos de Jung baseado nos três volumes de manuscritos e desenhos que ela realizou, ricos em desenhos e registros das análises de Jung, acolheu os aspectos do arquétipo do feminino sombrio, terreno, erótico e destrutivo. Mas deixou de fora a direção das visões, que estaria se movendo em direção ao coniunctio, a união do masculino com o feminino como opostos.
Para a conferência de 2019, a neta de Christiana Morgan, Hilary Morgan, literalmente entra em cena. Cineasta, ela havia sempre se prometido fazer um documentário sobre a avançada para a época avó. E faz um curta documentário para a ocasião, intitulado “Tower of Dreams”3.
E aqui, talvez, possamos entrar no coração da questão. Quando busca análise com Jung, o que Christiana tinha de demanda principal era se ela e Henry Murray deveriam consumar a relação romântica, uma vez que ambos eram casados. Ela com William Morgan, ele com Josephine Lee Rantoul.
Jung, que também tinha uma relação extraconjugal com Tony Wolf, sugere que sim, que Murray deveria assumir Christiana como sua “femme inspiratrice”, sua musa inspiradora. Ambos assumem discretamente entre si então a relação, que dura 40 anos, sem se separar dos cônjuges.
Ao voltar para os EUA, ambos seguem trabalhando na Clínica de Psicologia de Harvard, Christiana atuando também como lay analist, um termo que designava então terapeutas que não eram médicos.
Quando Christiana volta à Suíça para retomar as sessões, Jung parece tê-la aconselhado a fazer como ele mesmo fazia em relação à família: ter mais filhos com William, ser mais “feminina”. Christiana opta por não seguir o conselho. Talvez sentisse que já tinha se aventurado demais no campo do feminismo e em seu próprio processo de tornar-se si mesma para voltar atrás.
Dedicar-se ao próprio processo de individuação, aliás, cobrou seu preço. Na participação do podcast This Jungian Life, a cineasta e neta Hilary Morgan conta que seu pai, William Morgan Júnior, ficou órfão do próprio pai aos 13 anos e teve sempre uma relação complicada com a mãe4.
As cartas posteriores de Christiana a Jung, que ainda provavelmente serão publicadas um dia, sugere que ela não apenas estava insatisfeita também com a abordagem que os seminários da visão estavam tomando. Parece ter ficado desapontada com Jung.
Inspirada pela Torre de Bollingen de Jung, contudo, Morgan construiu 'A Torre no Pântano' em Newbury, Massachusetts, que fica a pouco mais de uma hora de Harvard. Era um refúgio para sua arte e pesquisa psicológica.
Construída com a ajuda do carpinteiro local Kenneth Knight, a torre se tornou uma representação simbólica da jornada de individuação de Morgan. Repleta de suas esculturas, pinturas e vitrais, a torre incorpora sua exploração do inconsciente e sua relação criativa, intelectual e sexual, com Henry Murray.
Murray também a decepciona. Apesar dos papers escritos em conjunto, ele não teria conseguido superar seu ego e realmente incluir Christiana na sua obra. A relação de ambos segue velada aos olhos da puritana sociedade bostoniana dos anos 1930 a 1960. Mas, segundo a neta, ele era presença constante nos eventos familiares.
A vida de Christiana Morgan termina de forma obscura, em 1967, aos 69 anos. Murray tinha ficado viúvo de Josephine cinco anos antes, em janeiro de 1962. Ele e Christiana estavam de férias em Denis Bay, Saint John, Ilhas Virgens. Segundo a neta, amigos que os visitaram lá disseram nunca tê-la visto tão feliz. Paradoxalmente, ela, nadadora vigorosa, foi encontrada morta em dois pés de água. Segundo Murray, Christiana teria deixado na bolsa na praia o anel que ele tinha lhe dado e uma carta informando como queria que seu funeral fosse conduzido, o que pode sugerir suicídio.
Na entrevista que a cineasta Hilary Morgan concedeu ao Podcast “This Jungian Life”, ela também diz que a avó, naquela fase, estava bebendo pesadamente.
Difícil dizer o que se passa entre um casal hoje em dia. Mais difícil ainda especular sobre algo ocorrido há quase seis décadas. Talvez o atrativo de “femme inspiratrice” tivesse se esgotado para Murray, como antes dele havia acontecido com Jung e Wolf quando ele começou a estudar alquimia e ela não seguiu apoiando-o. Mas isto, claro, isto é uma especulação minha. Não acho que se trate, no entanto, de mera fofoca, uma vez que em Psicologia Analítica vida e obra estão entranhadas.
O que de fato se sabe é que Murray parecia estar na mesma época tendo um affair com uma jovem colega de origem argentina, Caroline Fish Chandler (1920-2015), que viria a ser tornar sua segunda esposa dois anos depois da morte de Christiana, em 1969. Caroline era 23 anos mais jovem que Christiana (27 em relação à Murray) e, como os tempos já eram outros, tinha educação formal e uma carreira acadêmica no campo da psicologia infantil.
Ao final deste mergulho na vida e obra de Christiana, me ficaram mais dúvidas que certezas. A primeira é que a inquietação inicial em relação à falta de seu nome no TAT era a ponta do iceberg de uma história riquíssima. E a vontade de visitar a terceira torre (sendo que já visitei Bollingen, embora não ainda a segunda, de Marie Louise Von Franz).
Fiquei agradavelmente surpresa com o revival em torno dessa analista junguiana, que havia caído no esquecimento.
Há a possibilidade de uma visita, que, segundo Hilary, pode ocorrer nos próximos anos. A cineasta, aliás, está desenvolvendo uma versão mais extensa do documentário, com novas entrevistas, o que deverá contribuir para uma compreensão mais profunda do enigma de Christiana, ajudando a resgatar essa narrativa das águas turvas em que se encontra. Suas próximas obras também prometem. Quem quiser contribuir com os trabalhos de restauração da 'Torre no Pântano' pode acessar o link: https://www.towerofdreamsdoc.com/support.
Referências
1. Douglas, C. Translate this darkness: the veiled woman in Jung´s circle. (Princeton University Press, 1993).
2. Jung, C. G. Visions: Notes on the seminar given in 1930-1934 - Volume 1. (Routledge, 2019).
3. Morgan, H. Tower of Dreams. (2019). Disponível em: < https://www.towerofdreamsdoc.com>. Acesso em: 28 set 2024.
4. Lisa Marchiano, D. S. & Lee, J. The secret life of a woman’s soul: Jung’s American muse: the visions and art of Christiana Morgan. (2024). Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=DDvtGeq2Ufs>. Acesso em: 28 set 2024.
Por Monica Martinez
Primavera de 2024
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