Ato falho: até tu, Freud?
- Monica Martinez
- 27 de out. de 2020
- 3 min de leitura

◦Em 1901, o pai da psicanálise, Sigmund Freud, apresentou a descrição dos famosos atos falhos: atos de esquecimento ou lapsos de fala que refletem motivos inconscientes ou ansiedade (SCHULTZ; SCHULTZ, 2009).
Ele sugeriu que, no comportamento cotidiano, as ideias inconscientes estão em busca de expressão e afetam nossos pensamentos e nossas ações, quer queiramos ou... não.
Tanto que na definição da American Association of Psychology, em tradução nossa, o ato falho é, "na compreensão popular da teoria psicanalítica, um erro inconsciente ou omissão na escrita, fala ou ação que é considerada como sendo causada por impulsos inaceitáveis rompendo as defesas do ego e expondo os verdadeiros desejos ou sentimentos do indivíduo" (APA, 2007). Não por acaso, em inglês o termo é "Freudian slip", algo como deslize ou escorregão freudiano.
Gosto particularmente de como o próprio Freud descreve um ato falho que ele mesmo cometeu, analisando-o até chegar a uma compreensão mais aprofundada do "erro" de escrita cometido.
O título do escrito já é convidativo: "A sutileza de um ato falho", e está no livro Mal-estar da civilização (Freud, 2010).
"Estou arrumando o presente de aniversário de uma amiga, uma pequena gema gravada, que deve ser incrustrada num anel. Ela vai fixada no meio de um cartão, no qual escrevo: "Vale para um anel de ouro do joalheiro L. ... para a pedra inclusa" (Freud, 2010, p. 471).
Ora, no lugarzinho em branco, Freud havia empregado a palavra bis, que quer dizer até em alemão, donde uma preposição que exprime limite de tempo. Ele se pergunta: "por que a escrevi, então?".
O pai da psicanálise começa a analisar o porquê de ter usado uma palavra que não se encaixava ali. "Por que justamente bis"?, ele se pergunta.
E pergunta-se se não se trataria do bis latino, que significa "pela segunda vez". "Bis, bis, gritam os franceses, quando querem a repetição de algo num espetáculo".
Freud pensa então que havia matado a charada, isto é, tinha recebido um aviso de seu inconsciente para não repetir a mesma palavra. Como ele diz, "(...) o ato falho não alcança seu propósito ao se realizar, e sim ao ser corrigido".
Donde ele chega a uma primeira solução. "Tenho de cortar o bis, e desse modo elimino, por assim dizer, a repetição que me incomodava".
Satisfeito com a solução, ele lembra no entanto que "nas autoanálises há sempre o perigo da interpretação incompleta".
É neste ponto que entra uma parte vital das psicologias profundas: o ato de narrar o que se está pensando, sentindo, fazendo, para um outro. Ou, neste caso, a outra, a filha dele, Ana.
Ela acha uma outra possibilidade ali. "Você já presenteou uma pedra assim para um anel. Provavelmente é esta repetição que você quer evitar", disse ela. "Não gostamos de dar o mesmo presente".
O argumento convenceu Freud: seu inconsciente o estava alertando quanto à repetição do presente por meio de uma repetição da palavra.
Ele se pergunta porque essa objeção havia sido escondida, disfarçada. "Tinha de haver algo que receava vir à luz. Logo vi claramente o que era. Eu não queria me desfazer daquela gema, ela me agradava muito".
O ato falho desencadeou uma reflexão em Freud: o de que isso apenas realçava o valor do presente. "Que presente seria, se não nos pesasse um pouco nos privarmos dele?".
A conclusão final de Freud foi a de que "os processos psíquicos mais despretensiosos e supostamente mais simples" podem ser "bem complicados".
Como ele mesmo sintetiza ao final do texto: "O sujeito se equivocou ao escrever, pôs um bis onde se pedia um für, percebeu isso, e esse pequeno erro -- na verdade, apenas um ensaio de erro -- tinha muitos pressupostos e precondições dinâmicas".
Uma outra camada de complexidade seria se este mesmo ato falho fosso cometido por outro psicanalista. Jung, por exemplo, não achava que o inconsciente estava querendo cifrar ou esconder nada, seja num ato falho ou num sonho. Mas isto já é história para um próximo post.
Monica Martinez
Primavera de 2020
Para saber mais
Freud, S. (2010). O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). São Paulo: Companhia das Letras, p. 471-473.
Schultz, D. P., & Schultz, S. E. (2009). História da psicologia moderna (12th ed.). São Paulo: Cengage Learning.